O Incrível Circo Digital foi a grande surpresa de 2023 no cenário de animações, e uma grata surpresa, pois não é todo dia que uma animação independente é lançada, e que ainda alcança as 200 milhões de visualizações no YouTube, se isso já não acontece frequentemente com grandes youtubers, o que dirá então de uma obra totalmente original e de uma produtora independente vindo do nada?
Bem, não foi bem do nada, O Incrível Circo Digital é uma obra que trouxe aquilo que estava perdido no cenário de animações ocidentais, com a qualidade que grandes produtoras simplesmente não estão conseguindo entregar, seja o enredo, os personagens, a animação, os traços, a trilha sonora e ambientação, e até sua divulgação.
Hoje abordo alguns dos fatores que contribuíram com esse sucesso da animação!
Clareza e objetividade
Como eu tinha dito no meu último texto no ano passado, sobre o boom das animações independentes, o público cansou do conteúdo chulo e repetitivo que as animações ocidentais, em sua maioria americanas, estavam trazendo há mais de uma década, não à toa, os animes japoneses que tanto gostamos ganharam ainda mais popularidade e relevância.
Mostrando que as pessoas estão dispostas a dar audiência para o que realmente dá prazer em assistir, quando se tem estórias relevantes, bons personagens, enredo organizado e bem explorado, boa qualidade gráfica das animações, e principalmente, o respeito ao público, com o que de fato se mantém a obra em relevância para com o público, não misturando no meio dela nenhum tipo de militância ou proselitismo, e não corrompendo personagens e enredos por uma agenda qualquer, entregando ao público, aquilo que o público realmente quer ver.
O Incrível Circo Digital veio com uma proposta muito clara, objetiva, e incrivelmente rica de detalhes em sua concepção, e o exibiu com grande qualidade em seu episódio piloto. Primeiro, temos uma vista clara do que é a obra, quem são os personagens, o mundo ao qual o enredo ocorre, as linhas de raciocínio dos personagens, e a sistematização destes no enredo, depois temos um desenvolvimento de cada personagem durante o enredo, e uma conclusão que fez o público desejar uma continuação.
Vemos primeiro que a protagonista, Pomni, aparece neste mundo com outros personagens, vemos o primeiro pivô das ações, a IA chamada de Caim (tradução direta de Caine em inglês) que comanda as ações deste mundo, o único não-humano de todos os personagens centrais, e então conhecemos estes outros personagens, a Gangle, a Zooble, o Kingo (Kinger em inglês), Ragatha, Jax e o Kaufmo.
Caim mostra todos os cenários da obra para a recém chegada ao Incrível Circo Digital, este sendo o mundo da obra, e todas as suas funcionalidades, ocorre então a primeira aventura, que funciona como minijogos, já que pelo o que parece, O Incrível Circo Digital é um jogo de realidade aumentada muito avançado, logo, vemos o cerne da obra, não há saídas deste mundo virtual para o mundo real.
Quando eu disse no começo que não veio do nada, não era em relação à proposta apresentada, mas sim à fórmula de se apresentar para o público, mostrando os personagens em sua forma completa, sendo objetivos e honestos com o público.
Para te dar uma ideia do que estamos tendo, Mestres do Universo lançado pela Netflix, o ressurgimento de He-Man no cenário mais atual de animações, prometeu a volta de um dos maiores nomes da história mais recentemente da animação, e entregou um produto medíocre, sendo bem generoso, já que o personagem principal, o He-Man, simplesmente foi ignorado pelos produtores, forçando ao espectador se contentar com a Tila totalmente modificada para os padrões mais atuais de personalidades femininas que a mídia permite, que não precisa de ajuda, sem defeitos, e obviamente, não muito fã do protagonismo masculino, não à toa a obra fracassou de maneira ridícula, ganhando baixas visualizações e gerando muitas críticas.
O que Mestres do Universo fez é chamado de ‘bait and switch’, bait sendo isca, e switch sendo a troca, ou seja, pelo trailer se captou o fã com o grande personagem principal, He-Man, e foi entregue outro personagem central sem o mesmo carisma durante a série, Tila, pois sabiam que se fosse algo voltado para ela, a ideia da animação não venderia, por saberem que ela não tem o carisma necessário, e principal, o enredo não é dela, as atenções são para He-Man e seu arque inimigo, Esqueleto.
Essa prática de prometer algo e entregar outro, sendo chamado aqui em Goiás de PICARETAGEM, simplesmente está corrompendo as obras e alienando toda uma base de fãs, e onde estes estão indo a procura por obras boas e honestas? Japão e seus vários animes. Por isso que uma obra se apresenta de maneira direta, mostrando sua concepção por completo, e essa transparência se tornou mais necessária do que nunca.
A apresentação clara e direta é fundamental para atrair a atenção do espectador, ainda mais de um conteúdo totalmente novo no mercado, com isso, realmente vemos o verdadeiro potencial que a obra demonstra, além da real pretensão para com seu público, e este é o primeiro detalhe do sucesso da obra, a honestidade na entrega de seu núcleo para o público.
Ampla disponibilidade ao público
Um detalhe fundamental para uma disseminação eficaz de qualquer produto é a sua disponibilidade para o público. Se tem uma coisa que me incomoda e muito nos atuais serviços de streaming, é a baixa quantidade de conteúdos dublados, e ache o que quiser da dublagem, mas ela é responsável pela ampla disseminação de um conteúdo audiovisual.
Não é muito normal ver um vídeo ter algo na casa da centena de milhão de maneira convencional, fora os clipes musicais, um trailer muito impactante de um filme, ou um cataclismo sem precedentes. Para que vocês tenham uma mera noção do que estou falando, a animação em questão surpreendeu também pela disponibilidade direta no YouTube, como um conteúdo novo, se fosse esconder atrás da barreira de pagamento das plataformas digitais, ele sequer seria conhecido e entraria no enorme mar do esquecimento da Internet.
Até que a Crunchyroll faz isto no YouTube, mas geralmente lançando apenas um episódio e muitas vezes sem dublagem, e depois do lançamento em sua plataforma, já a Glitch, sendo uma produtora independente e bem pequena, conseguiu financiar suas produções como Murder Drones e O Incrível Circo Digital, o suficiente para disponibilizar dublagens oficiais com o recurso faixas de áudio que o Google a pouco tempo adicionou.
A animação em questão recebeu 14 dublagens, sendo elas em: alemão, chinês, coreano, espanhol, filipino, húngaro, indonésio, inglês (sendo a língua original da animação), japonês, português, russo, tailandês, turco e ucraniano.
Segundo o statista.com, dentre os 10 idiomas com mais falantes no mundo, 5 deles estão presentes na dublagem, sendo o inglês, chinês, espanhol, português e o russo, o inglês e o chinês sozinhos representando juntos a 2 bilhões de pessoas, e se adicionarmos a população da Indonésia, que hoje é de 286.180.515 milhões de pessoas, sendo hoje a 4ª maior população do mundo, o Japão com a 11ª maior população de 120 milhões, os russos como a Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão e Quirguistão, chega aos 200 milhões, os hispânicos com entorno de 559 milhões, e os germânicos, Alemanha, Áustria e Suíça, temos mais 100 milhões de pessoas nesta conta, o número fica realmente grande.
Ou seja, o número de pessoas que foram alcançadas pode ser grande por conta da igualmente grande disponibilidade de idiomas por legendas e dublagens oficiais, e não precisa ser um gênio com um QI 200 para entender que, quanto mais pessoas forem alcançadas, maior tende a ser o número de consumidores em potencial.
Gooseworx já tinha um histórico de animações próprias, com um máximo de 15 minutos, e em média, inferiores a 10 minutos, sem legendas ou dublagens, alguns conseguindo 1 milhão de visualizações, e agora tem uma obra na casa da centena de milhão com estes recursos de comunicação por coincidência? Claro que não!
Sendo bastante conservador com os números, se você disponibilizar um conteúdo para 3 bilhões de pessoas mundo afora, se você tiver até 10% de retorno, já são números absurdamente altos, levando em conta de que há mais conteúdo audiovisual para se acompanhar por aí.
Foi uma sacada genial de marketing, primeiro disponibilizar numa plataforma gratuita e mundialmente conhecida e de amplo alcance como o YouTube, e depois dublar e legendar nas línguas mais populares ou para as maiores populações do mundo, os números não mentem e mostram que quanto maior for a disponibilidade, maior será o público. E se uma pequena produtora conseguiu fazer, passou da hora das produtoras por aqui perceberem isso, pois você se surpreenderia com a quantidade de animes que conhecemos bem aqui no Brasil, que lá fora estão dublados, e aqui não.
Detalhes diversos, potencial alto
A composição de O Incrível Circo Digital é algo que não se vê regularmente, mesmo se colocarmos os animes japoneses no mesmo plano, seja a composição dos personagens, seja o cenário e o enredo nele existente. Gooseworx já confirmou a influência do livro Não Tenho Boca e Preciso Gritar, do autor americano Harlan Ellison, que aborda uma IA (inteligência artificial) que aprisiona e tortura humanos num mundo pós apocalíptico.
Uma das cenas finais ainda há a referência à icônica cena da Última Ceia, quadro de Leonardo da Vinci, representando a história de Jesus e seus discípulos, fora todas as referências ao mundo digital dos anos 90, incluindo o “headset estranho” que Pomni revela ter usado antes de entrar no Incrível Circo Digital.
A composição de uma obra deve ser interessante o suficiente para que o enredo, no qual a obra se baseia, tenha algum valor agregado que faça com que o espectador não fique entediado, não é coincidência que o gênero isekai basicamente saturou, já que todos basicamente giravam entorno da mesma coisa, e com personagens não muito diferentes, salvo poucas exceções, como Konosuba.
É a mesma coisa que você andar na rua em qualquer ponto do Brasil, e dentre tantos HB20, Onix, Hilux, de repente ver um belo Pagani Huayra com um visceral V12 soando livre, é óbvio que o Pagani atrairá bem mais atenções do que qualquer outra coisa que esteja por perto, parte de cativar, é ser diferente do resto, alcançando com isso um destaque proeminente dentre todos os outros
Nada do que está na mídia hoje se iguala à proposta de O Incrível Circo Digital, e se souberem desenvolver este mundo onde não há escapatória, e no qual ele gera dor e sofrimento constantes, fazendo que personagens enlouqueçam e se abstraiam, com um humor sarcástico e bem pontual. A fórmula para o sucesso está pronta, precisando apenas ser bem gerida pela produção.
O mundo da animação é colorido, mas há um contraste mostrado quando Pomni encontra a porta de saída, mostrando corredores intermináveis com cores mais pálidas e monótonas. O quarto do Kaufmo está coberto de rabiscos com mensagens sobre não existir uma saída, a qual Pomni viu, mostrando que nem tudo são maravilhas neste mundo.
Há uma teoria que os modelos de personagens são baseados nas personalidades, e é uma teoria que não está sem embasamento, Kingo é frágil e histérico, e ele carrega a imagem da peça de xadrez, o rei, que sem uma rainha pode ficar incrivelmente indefeso. Pomni é uma bobo da corte, talvez alguém que ninguém levava a sério.
Os detalhes têm uma boa sacada com o que estão propondo, e denotam o bom nível de atenção aos detalhes para que a obra aborda, e é um chamativo à parte que por onde pude observar, uma grande parcela dos espectadores notaram e se agradaram disso.
Bom aproveitamento dos detalhes
Outra atenção aos detalhes que a obra mostra é a composição gráfica e sonora da animação, e falo, para um estúdio pequeno e de baixo orçamento, demonstrou uma capacidade que estúdios mais ricos por aí, não estão tendo.
Há vídeos de pessoas que estão trabalhando na parte da animação, demonstrando toda a feitoria e suas várias etapas das cenas e dos personagens, testando por exemplo se a física deles funciona de acordo para que não haja deformações grotescas.
Há também a atenção destinada em especifico aos personagens, por exemplo; Kingo é uma peça de xadrez, o rei, logo, seus movimentos são arrastados, ele não possui pernas ou braços físicos. Zooble é uma amalgama de peças de formas diferentes, uma cacofonia se tivesse forma física, e suas pernas são assimétricas, fazendo com que ela tenha movimentos desengonçados, e como seu corpo são peças diversas, ele é totalmente móvel e destacável, como o antigo brinquedo Sr Cabeça de Batata, que Toy Story usou.
Gangle é uma união de fitas e uma máscara de teatro clássico, seus movimentos são suáveis e leves, e seu corpo simplista atua da mesma forma como uma fita, demonstrado em cena durante o episódio piloto.
Raghata é uma boneca de pano que transmite uma simpatia ímpar, como qualquer boneca, e resvala sobre sua persona na obra. Jax é um coelho esguio que anda e se comporta como um certo coelho muito famoso das animações (seria uma referência?).
Design belo, ambientação superior
Fora que os cenários demonstram o teor da estória e no qual o enredo usa de acordo, os quartos como se fossem os lobbys de servidores online, a tenda que é usada para as principais atividades, o vácuo sendo descrito como fora das fronteiras do jogo, e por aí vai.
Há uma persona bem definida aqui, não é somente um cenário aleatório e aproveitado de algum lugar, os personagens têm detalhes embutidos com muita clareza e explorados bem no enredo, Zooble não se dá bem com os outros, Jax e seu humor ácido, Pomni e sua insegurança, Raghata e sua simpatia, Kingo e sua sanidade discutível de um rei sem rainha, Gangle e sua fragilidade, Caim e sua insanidade controlada, todos são conhecidos e representados bem por conta de seus designs.
Fora que a ambientação é envolvente, a trilha sonora sendo dirigida pela mesma pessoa responsável pela criação da obra não é algo comum de se ver, mas que aqui mostrou um casamento perfeito. Quando Pomni está procurando por Caim, logo depois de descobrir que Kaufmo havia enlouquecido, a trilha sonora transmite bem a ansiedade da Pomni.
A trilha de abertura da animação transmite toda a energia e alegria de um circo, condizendo com o nome da obra, a trilha do Kaufmo, com uma tensão impar ao estilo clássico, a música do vácuo Going Nowere que te leva ao infinito, e a última música apresentada, Your New Home, uma música que realmente arrebata o espectador de maneira incrível. Sem contar o resto das músicas com temas que lembram a de jogos digitais, que apesar de serem todas trilhas bem curtas, transformaram a ambientação da obra de maneira incrível.
Expectativas
Poucas são as obras que realmente compensam em manter a atenção, seja um bom design, seja um enredo surpreendente diferenciado, seja o hype que os fãs geram, e uma que merece a atenção é O Incrível Circo Digital. Cada personagem é devidamente mostrado no episódio piloto, e cada um tem uma persona atrelada e bem explorada.
A animação 3D é uma das melhores de 2023, mesmo tendo pequenos defeitos de iluminação e fragmentação, como um primeiro trabalho é algo incrível de se ver, e com um público de 200 milhões no YouTube, não é um absurdo imaginar que os lucros com as visualizações deram bons números, o que é seguro afirmar que a qualidade geral tende a ser mantida, e até melhorada.
E o que dizer do enredo e seus personagens? Único e consistente em todos os detalhes, espero que continuem com o trabalho, pois apoio para um segundo episódio, já tem de sobra, e para nós brasileiros, a dublagem é do nível de grandes séries, com Guilherme Briggs dublando o Caim, a Fernanda Monteiro fazendo a Raghata, o Kingo pelo Sílvio Giraldi, que fez o Iruka em Naruto, a Gangle dublada por Vivian Zedek, que fez a voz da Himawari Uzumaki em Boruto, uma turma realmente bem escolhida.
Resta ver se entregarão a qualidade do piloto para os próximos episódios, há relatos de que a composição da estória está em andamento, então há futuro para a obra, apoio dos fãs já tem, o potencial é enorme, bastam administrar toda essa composição, que o sucesso pleno será questão de tempo.
Eu amei essa animação, ansiosa pelos próximos episódios