Yurei Deco foi lançado na temporada de verão de 2022 sem muito alvoroço ou mesmo divulgação, (efeitos colaterais de quando se tem muitos animes de qualidade pra se acompanhar), e este é um bom exemplar para aqueles que queiram acompanhar algo diferente do habitual, da animação até o roteiro, Yurei Deco consegue se destacar bem, e são estes destaques que mostrarei nesta análise!
Enredo diferenciado
Yurei Deco pode ser descrito em uma frase, “uma ode à cultura”. As referências artísticas aqui não são somente um ‘easter egg’ para servir de uma breve homenagem, ou servir à tendência do momento para os fãs, a coisa aqui evoluiu para um novo nível de referência onde as referências são partes ativas da estória e seu desenvolvimento. A começar pelo lugar onde ele ocorre, é na ilha de Tom Sawyer onde tudo se desenvolve, a ilha foi criada por Mark Twain, e a primeira curiosidade aqui é que isso é um fato em nosso mundo, Mark Twain sendo o pai da literatura moderna americana e Tom Sawyer sendo um personagem de uma de suas principais obras literárias na metade final do século 19 (1876) que dá o nome à obra. O livro constitui em Tom Sawyer vivendo aventuras e jornadas de descobrimento nos EUA do século 19 junto de seu amigo Huckleberry Finn, outro personagem que dá nome a um dos personagens de Yurei Deco, sendo esta a premissa da estória de Yurei Deco, onde Berry e Hack na ilha de Tom Sawyer juntas tentam descobrir os segredos por trás da ilha onde a realidade aumentada predomina na sociedade.
Além destas referências, outras aparecem e denotam o âmago do enredo, “Era uma vez em um lugar muito distante, onde morava um gigante de cem olhos, e como o gigante descansava seus olhos separadamente, ele nunca tinha dormido um minuto sequer em sua vida. Como passava seus dias observando e estudando tudo e a todos, as pessoas lhe deram o dever de cuidar do mundo inteiro. E o gigante ficou contente em ser útil para as pessoas. Sob seu olhar vigilante, as pessoas desfrutavam da paz e tranquilidade. Um dia o gigante viu alguém cometer um ato traiçoeiro e avisou às pessoas do que havia ocorrido. Mas após o gigante ter sofrido da ira do traidor, e também de todas as pessoas, o gigante foi morto. Elas sentiam medo do gigante que não dormia, imune ao tempo e espaço, esse gigante capaz de ver tudo o que acontecia, a todo momento, tornou-se temido por todos. Porém, as pessoas sentiram compaixão com ele, e estamparam sua centena de olhos na belíssima plumagem de um pavão. Assim, o gigante que nunca dormiu se tornou as penas do pavão, e pôde enfim descansar em paz”. Se eu tiver que adivinhar, esta sinopse da estória que é a primeira coisa a ser mostrada no primeiro episódio, o gigante com olhos em todos os cantos seria uma referência ao Big Brother de George Orwell (Eric Blair). A obra em si aborda temas que se você for parar pra pensar, não são simples e tão pouco pequenos de se abordar sem antes muito estudo e horas de conteúdo suficientes para que os abordem.
A começar pelo local, é uma ilha no meio do nada e sem conexões estabelecidas ou referenciadas direta ou indiretamente na animação, e que vivencia uma realidade aumentada por meio de Deco’s, aparelhos semelhantes aos óculos de realidade aumentada, por meio destes as pessoas se envolvem num mundo híbrido onde as pessoas estão sobre constante conexão com outras, tendo acesso à informação e dados variados, além de basicamente poderem viver em sociedade tendo acesso aos mais diferentes meios de vida, trabalhar, estudar, acesso à saúde, etc. Berry é filha de moderadores de conteúdo do CAC (Centro de Atendimento ao Consumidor), que é responsável pelo controle do conteúdo da realidade aumentada, por meio de seu Deco defeituoso ela é capaz de enxergar a Hack, que é um “fantasma’’, termo usado para pessoas que não estão registradas pelo CAC, nem seu nascimento ou sua morte, outro tema abordado na animação. Ambas se encontram com o ‘Fenômeno Zero’, e partindo daí, ambas tentam descobrir quem ou o quê está gerando este fenômeno na ilha, que zera o ‘amor’ das pessoas, amor este que é uma referência clara à função de redes como o Instagram, que eu cito nas primeiras impressões que fiz meses atrás aqui na Anime United.
Tudo aparentemente funciona bem na ilha de Tom Sawyer, a aparência aqui é tudo, tanto que há hologramas projetados em toda a cidade com alegorias cheias de cor, porém que acaba por esconder os segredos de tudo isso, já que o CAC controla todo o conteúdo gerado pelas pessoas, barrando aquilo que é considerado ofensivo ou que incomode as pessoas em algum grau, Berry ao descobrir o que seus pais fazem no CAC fica cada vez mais incomodada com o fato de que vários dados são censurados sem o consentimento dos usuários. Hack e Berry, que lembra muito a fonética de Huckleberry em inglês, se juntam com o grupo de outros ‘fantasmas’ para descobrirem mais sobre o CAC e o Fenômeno Zero com o objetivo de não serem mais fantasmas, pois aqueles que não são registrados, também não podem usar Deco’s e de tabela, não podem viver em sociedade. As sacadas do enredo são muito boas e bem colocadas na trama, e a quantidade de detalhes não atrapalham o ritmo da obra e tão pouco são desperdiçadas no roteiro. O gigante de cem olhos que abre o primeiro episódio contudo não é simplesmente a CAC, e sim a mulher por trás dela e do Fenômeno Zero, chamada Jô. O fenômeno tinha por objetivo despertar em alguém o necessário para sair deste sistema desigual, que fosse puro de coração para assumir seu posto e alterar os rumos da situação, então aí aparecem as duas protagonistas, uma que assumiu o posto de Jô e outra que seguiu sua vida num novo mundo. O tema da digitalização exacerbada é o que move a estória, que usa de artifícios e alegorias muito bons para transmitir sua mensagem de maneira fácil de se compreender e conectar, como eu disse, não são referências que ficam avulsas para alguém notar, mas que moldam a estória e que tem valor real!
Personagens com personalidade
Um enredo sem personagens que casem com a proposta da estória se torna vazio, e aqui em cada persona pode ser notado o conteúdo da estória em si, pois cada personagem tem alguma importância para o desenvolvimento do enredo em cada um dos episódios. A começar por Hack e Berry, Hack é rotineiramente confundida como sendo um garoto, isso por quê além das roupas que escondem sua persona, tem sempre um vocabulário mais curto e grosso, através dela é que Berry entra nessa vida de fantasma, Berry sendo filha de moderadores da CAC começa a entender como tudo opera em seu mundo e tem acesso aos dados de seus pais. Numa tentativa de livrar Hack de um julgamento fechado da CAC, Berry é descoberta de um disfarce e foge com Hack e ambas são dadas como mortas na perseguição, transformando-a em um fantasma. Passa-se meses após o ocorrido e Berry está com um grupo de detetives fantasmas, onde Finn é o cabeça do grupo, ele é capaz de operar um ‘hiperverso’, onde se é criado um universo de realidade aumentada para acesso de dados fundamentais nas investigações que o grupo faz, Finn depende de Hack e Berry pois ambas podem usar deco’s, mas não Finn que possui um problema crônico com o uso estendido do aparelho de realidade aumentada.
O aparelho de hiperverso foi criado por Hank, um engenheiro autônomo que foi contactado por Finn para este propósito, por ele o acesso de dados, gadgets usados pelo grupo são usados e as missões possam acontecer. As missões em si são trazidas pelo Sr. Watson, que usa uma cabeça de gato para ocultar sua identidade, ele se mistura no povo atrás de rumores do meio social (além de ter com essa roupa de gato as mesmas habilidades de um), mesmo papel da Madame 44, ela é uma senhora de idade que escuta rumores e os leva ao grupo, ela também se transforma em uma máquina multitarefas com vários recursos que ajudam nas missões, além de sua neta Smiley, que como seu nome sugere, tem uma feição risonha que é oculta por uma máscara de gás, que por meio dela também se decorrem as missões, como no episódio 6 onde ela encontra um drone que desencadeia uma missão vital para o desenrolar da estória de Yurei Deco. Por meio de todos eles, a estória pode andar em frente com sua proposta e ter vida, é algo que infelizmente poucas estórias aproveitam e usam com destreza. Basta ver os personagens e como eles são usados, Hack e Berry sendo as personagens principais por poderem usar os Deco’s e por onde a estória começa e é centrada, e os outros personagens sendo secundários, não são esquecidos ou usados pontualmente pra nunca mais aparecerem, todos tem grande participação no enredo e dão vida à estória de Yurei Deco.
Visual diferente do habitual
Um outro chamativo de Yurei Deco é sua arte, a animação esbanja vida com seus traços únicos e sua escolha que casa com o contexto de seu enredo. Se você já assistiu ou ainda não, perceba a paisagem da ilha de Tom Sawyer as casas são apenas blocos de concreto sem vida, por dentro e por fora, daí o uso de Deco’s para decorar a cidade com mais cores e formas contrasta e mostra isso de maneira brilhante, o contraste com a zona da população fantasma mostra a diferença de se viver em constante conexão online, com a vida sem esta conexão, onde do lado das pessoas sem registro, as casas tem formas variadas, as pessoas não se escondem de sua realidade, colhem e plantam o que comem, tem contato direto com as pessoas, enquanto do outro lado a vida sem Deco’s não existe, e o visual geral da obra agrada ao olhar e ajuda ao contar a proposta de Yurei Deco. Outra coisa que o visual ajuda são os personagens, cada um dos personagens citados anteriormente tem o seu próprio visual, sua própria identidade na qual em nada se desperdiça. Cada detalhe dos personagens denota também sua personalidade para a estória em si e para si próprios, nem mesmo os personagens de apoio que vão aparecendo nos episódios escapam deste detalhe de identidade, sendo uma animação original creio que foi possível sair da caixinha e partir para uma proposta mais ousada que não dependa de um mangá, o que é um ponto bem explorado aqui, já que você não vê repetições de design para cortar custos ou por falta de criatividade.
A animação em si também destoa do habitual, as cenas tem movimentos fluidos e as expressões dos personagens tem vida, cada personagem atua de forma independente, valorizando cada personagem de maneira incrível e não desperdiçando potenciais. Há o uso do 3D nos cenários que casa com a proposta da estória, destacada quando os personagens entram no hiperverso virtual e exploram o mundo virtual.
Visão Geral
Quando eu trouxe minhas Primeiras Impressões eu disse o seguinte sobre a proposta do primeiro episódio: “A estória tem uma vibe digital embutida nela, tendo um mundo que funciona a base de uma realidade virtual aumentada, onde as pessoas devem reagir à outras pessoas para que assim tenham uma vida, e qualquer coisa fora disto não existe. A alusão à Internet e as mídias sociais estão por todo canto e bem distribuídas”, foi o que me chamou mais a atenção na obra, abordar um tema que é relevante e atual nunca é fácil, muitas vezes descambando para uma militância e panfletarismo baratos que no geral não adicionam em nada, mas quando criam personagens certos para um enredo bem montado o resultado tende a ser agradável. A estória tem boa qualidade e desenvolvimento pleno, ela não desperdiça potencial com personagens não explorados ou com tramas complexas o suficiente para não serem compreendidas diretamente e em poucos episódios, ela é direta ao ponto e dá tempo ao tempo, compreender o enredo e seus detalhes não é tarefa difícil para ninguém e sua proposta é relevante e tem peso para ser bem vista por qualquer um.
Os personagens são bem usados e tem personalidades definidas e que não são estáticas, a maneira como os autores deram vida aqui é de ser bem admirada por também não ser fácil, e como eu disse antes, sendo uma animação que não veio adaptada de lugar algum, teve este espaço extra para crescer e apresentar de maneira mais ampla a sua proposta, apesar de não ser perfeito por conta de certas falhas aqui e ali na estória, já que em dois pontos da trama se pulam vários meses sem nenhum tipo de explicação do que ocorreu durante o período pulado, e que certos pontos ficam sem uma conclusão clara, por exemplo, o que ocorre entre os episódios 2 e 3 e no último episódio, quando a trama se encerra com o desfecho da trama do “Fantasma Zero”, mas que não ficou claro se a mulher por trás dela era uma vilã ou um catalizador da estória. Mas sua mensagem foi bem colocada e que deu inclusive espaço para uma segunda temporada, o universo de Yurei Deco é bem proposto e bem executado no geral.
As expectativas foram atendidas?
Sim, eu disse nas Primeiras Impressões que “A animação é um destaque que puxa o espectador direto nela”, e ela constantemente foi bem colocada, a qualidade se mantém em todos os episódios e em cada quadro, “a narrativa é interessante e tem alusões bem feitas”, a narrativa também é bem montada e cativa o espectador para o próximo episódio de maneira que não é maçante e repetitivo assistir a nenhum dos 12 episódios, “apesar do enredo inicialmente ainda não ter sido propriamente apresentado e conhecido, creio eu que isso mudará ao longos dos episódios, e o fato de ser uma animação própria e não uma adaptação dá espaço para isto”, e o enredo também foi apresentado com boa qualidade na execução, e eles aproveitaram bem o espaço extra que animações originais dão para criação.
Notas
Animação: A animação me agradou, não foi um ponto de revolução da arte, mas passa longe de ser mais um anime genérico ou negligenciado com animação de péssima qualidade, é fluida e dá vida ao enredo e personagens, não há monstruosidades nos objetos e personagens ou nenhum tipo de anormalidade, faz o básico direitinho! 8.0/10
Arte Gráfica: Um ponto forte de Yurei Deco é sua personalidade sólida e definida, e sendo um anime original, ele aproveitou para se propor de maneira bela, os personagens tem designs próprios, reações próprias que não se repetem, o mundo e sua paisagem casam perfeitamente com a obra, o uso de cores e formas fazem o mesmo, ficando acima da média de outras obras e tendo destaque nisso, apesar de faltar um pequeno refino no total, não é algo que atrapalhe a personalidade que esbanja da obra! 8.5/10
Personagens e Enredo: Personagens com personalidade facilmente distinguida, mas o enredo poderia ter sido melhor, o final não é ruim, mas fica faltando detalhes que deixam um vácuo na mente, porém, ainda sim é uma estória distintiva e única. 7.5/10
Trilha Sonora: A abertura e encerramento são boas, principalmente a abertura com um tema tecno futurista, mas a trilha sonora da série ficou fraca, não pude percebê-la na maior parte das vezes, foi a única coisa que não seguiu a personalidade proposta. 4.5/10
Geral: É uma boa obra, diria que acima da média que vemos por aí, com personalidade própria e uma proposta nova e bem executada é facilmente distinguida de outras obras, é agradável de se assistir, é constante no que apresenta, infelizmente não está dublado, mas consegue fazer o básico com boa qualidade e apresenta coisas novas sem problemas crônicos. 7.1/10
Indicações
Se você procura entre as várias animações da temporada e procura por algo novo que sai da caixinha e trás algo diferenciado, Yurei Deco cairá como uma luva para você, tem um pouco de seinen e slice of life misturados de maneira agradável, ele se propõe de maneira ousada, mas sem forçar nada. É um anime para se conferir, sem dúvidas, me agradou do começo ao fim e creio que te agradará!
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